quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

SAINDO DO COMA ALCOÓLICO



Por Marcos A. de Souza (**)

 Martim Afonso de Souza ao desembarcar as primeiras mudas de cana-de-açúcar no Brasil no século XVI plantava as raízes de um  dos mais amargos e daninhos agronegócios que já brotaram nessas terras tropicais, cujos frutos nada doce para os trabalhadores empregados na sua produção,  ainda hoje tem embriagado muita gente. Foram séculos de exploração da mão-de-obra escrava pelos senhores  dos engenhos , degradação ambiental e todas mazelas inerentes a forma de produção agrícola agroexportadora assentada na exploração da força de trabalho e do monopólio da terra.
Nos últimos anos, o presidente Lula  tomado por  uma obscessão etílica, tem liderado uma cruzada nacional e internacional  para promover o etanol brasileiro.
Como um paladino do mito do combustível limpo, o presidente Lula, agora convertido no mais importante mercador desta nova comoditie do agribusiness nacional tem percorrido os cinco continentes, alardeando as benesses desse agrocombustível forjado sob o calor dos trópicos, pelo suor e o sangue de mais de um milhão de neoescravos canavieiros...
Esquece o empreendedor do "Fome Zero", que a defesa incondicional da expansão do etanol ameaça a soberania alimentar, e a pureza do ecologicamente correto se desfaz com a destruição ambiental provocada de forma direta e indireta sob os principais biomas e ecossistemas do país, além de ser a canavicultura uma das culturas que mais emprega agrotóxicos no agronegócio brasileiro.
Aproveitando-se dos mecanismos ideológicos que tornam o Brasil um território fértil para a semeadura de mitos que acabam dando frutos amargos, e que a nossa história é pródiga em demonstrar, os defensores  da expansão do agronegócio  tem destilado alguns desses engodos etílicos, que vem a muito embriagando as consciências, inclusive de alguns dos  mais altos quadros da nossa intelligentsia , senão vejamos:

MITO 1: A expansão do agronegócio sucroalcooleiro não provocará nenhuma ameaça a soberania alimentar brasileira. Isso porque o Brasil é um país de dimensões continentais, e a cana-de-açúcar ocupa menos de 1% do território nacional, e nas previsões mais otimistas ocupará no máximo 1,7%  da área total do país.
O FATO: O engodo do ufanismo do "país continental" esconde  a dinâmica territorial do agronegócio sucroalcooleiro. Explico: não é a totalidade do território brasileiro  em que se encontram as condições  edafoclimaticas (solo e clima), muito menos as  economicas (acessibilidade aos mercados nacionais e aos canais de exportação) para a territorialização do agronegócio canavieiro.A esse respeito basta observar que desde a criação do Proálcool na década de 1970 até hoje, houve uma expansão da ordem de mais de 240% na área plantada da cana, e o comportamento dessa expansão sugere muito mais uma concentração espacial em determinadas regiões do país do que uma expansão propriamente dita. Somente o estado de São Paulo concentra mais de 55% da cana plantada no Brasil, e o eixo Centro-Sul, 85% da produção nacional.  No  Paraná, 93% da cana-de-açúcar está concentrada na porção setentrional (norte e noroeste) do estado . E o que isso significa?
Que nem todo o território brasileiro está apto a rentabilizar em patamares de igualdade o agronegócio canavieiro, e que existem certas porções espaciais em que os agroindustriais terão uma maior renda fundiária, tendo em vista a qualidade dos solos e principalmente a acessibilidade aos potenciais mercados nacionais (maior frota de carros flex) e internacionais (portos/exportação). E são nessas porções espaciais em que ocorrerá as disputas territoriais entre a produção de alimentos e a da cana. Hoje o estado de São Paulo importa muito mais alimentos per capita do que a trinta anos atrás. Importa de outros estados alimentos que outrora produzia em seus limites territoriais.
No Norte e Noroeste do Paraná da década de 1980, arroz, feijão e cana ocupavam juntos uma área de 507 mil hectares, sendo que a cana detinha cerca de 10% dessa área. Em 2006, nessa mesma porção territorial, essas tres culturas juntas ocupavam 535 mil hectares, das quais a cana passou a ocupar surpreendentes 75%!!!
Por outro lado, os "menos de 1%" que a cana ocupa no território nacional se agigantam a patamares superiores a 10% , quando se leva em conta não a área total, mas a área ocupada pela agricultura no Brasil.
Não obstante há que se atentar para o processo de concentração fundiária inerente ao agronegócio.
Só para se ter uma idéia desta concentração, em 1986, ano ápice da fabricação de automóveis movidos a etanol no âmbito do Proálcool, se tinha no estado do Paraná uma média de 6 mil hectares de área plantada para cada unidade agroindustrial.
Na safra 2007/2008 esta média já era de 16.200 hectares por cada unidade, o que significa um aumento de 270%, no índice de concentração fundiária. Essa terra que hoje se enconra sob o controle do agronegócio canavieiro tinha no passado outros usos, destruídos pela expansão da monocultura.

MITO 2: A expansão canavieira não produzirá nenhum impacto ao bioma amazônico. "Ou seja, 99,7 por cento da cana está a pelo menos 2 mil quilômetros da floresta amazônica. Isto é, a distância entre nossos canaviais e a Amazônia é a mesma que existe entre o Vaticano e o Kremlin", (Lula, 2008).

O FATO: Conforme foi visto anteriormente, nem todo o território brasileiro está apto a rentabilizar igualmente o agronegócio sucroalcooleiro, tendo em vista as condições edafoclimáticas, as condições econômicas e de infra-estrutura para o escoamento da produção. Nesse contexto se enquadra  a região de domínio do bioma amazônico, distante do mais promissor mercado consumidor brasileiro (a maior frota de carros flex e os principais canais de exportação estão no Sudeste brasileiro), e ainda com condições edafoclimáticas desfavoráveis, tendo em vista que a umidade excessiva, característica do clima equatorial da região  poderia influir na inviabilidade comercial da produção de açúcar devido a pequena produção de sacarose comparada a outras regiões do país. Então, pelo menos nesse ponto nosso paladino do mito do combustível limpo estaria certo. Afinal é infima a produção canavieira na Amazônia, certo?
Bom, a cana não se expande para a Amazonia porque, conforme já ressaltamos os agroindustriais preferem territorializar porções espaciais que deem uma maior margem de lucros à sua produção. E ficou bastante claro que essas porções espaciais estão preferencialmente no Centro-Sul do Brasil. Logo será nessa região que ocorrerão as disputas territoriais entre a cana e as outras culturas. Ganhará essa disputa, aquela que oferecer ao proprietário fundiário uma maior lucratividade e nessa conjuntura atual artificialmente criada para a expansão dos agrocombustíveis, é óbvio a vantagem da cana sobre as demais culturas.
Sendo assim, a cana irá avançar sobre áreas anteriormente ocupadas pelas lavouras produtoras de alimentos, soja, pastagens,  etc, que procurarão se realocarem no espaço agrário brasileiro, potencialmente no vetor de expansão da fronteira agrícola brasileira, que é indubitavelmentenos últimos anos a região do bioma Amazônico.  Assim, mesmo não estando diretamente na Amazônia, as disputas territoriais em outras regiões do país acabam empurrando para as áreas de expansão da fronteira agrícola as culturas engolidas pela voracidade do agronegócio sucroalcooleiro.

MITO 3 - Com a aprovação do Zoneamento Agroecológico da Cana em 2009, haverá enfim uma produção sustentável do etanol.
O FATO: Sem medo de errar, o ZAE não tem força suficiente para frear os mecanismos da racionalidade economica capitalista que regem as forças de mercado, o que consequentemente não irá frear os impactos socioambientais do agronegócio sucroalcooleiro. Até porque o zoneamento proposto pelo governo Lula proíbe a expansão da cana em locais onde provavelmente nenhum agroindustrial, nas suas visões mais empreendedoristas pretendia levar,(exceto nao bioma pantaneiro), como o bioma Amazônico, dunas, mangues, afloramentos de rochas e áreas de mineração. Paralelamente a negligencia a dinamica territorial do agronegócio sucroalcooleiro, o ZAE, exclui as áreas já controladas pelo agronegócio canavieiro.
Por outro lado, não há nehum mecanismo disciplinador do uso dos solos proibindo que outras culturas "engolidas pela cana", como a soja, as pastagens, etc, busquem se realocar no bioma amazônico, por exemplo. Muito menos cria uma reserva estratégica de terras, juntamente com a adoção de uma série de políticas  públicas voltadas a consolidação da soberania alimentar.
O Zoneamento Agroecológico aprovado no ano passado tem muito mais um caráter de certificador do etanol no mercado internaconal como "ecologicamente limpo e sustentável", que de ordenamento territorial.


MITO 4: O agronegócio canavieiro tem um grande e relevante papel social ao empregar milhões de trabalhadores rurais com pouca ou nenhuma qualificação no corte da cana-de-açúcar, gerando emprego e renda para as camadas mais pobres da população.
O FATO: A superexploração da força de trabalho dos cortadores de cana emerge como uma das mais vergonhosas espoliações da atualidade, no âmbito da contradição entre a opulência e rentabilidade deste agronegócio frente as precárias condições materiais de existência desses trabalhadores, não raro as vezes, comparados a dos escravos do período colonial.
Os mecanismos de exploração ao qual estão submetidos esses modernos escravos tropicais são tão refinados quanto o açucar que sai dos canaviais. Recebem por produção, ou seja pela quantidade de cana cortada em um dia,  uma das formas mais cruéis de pagamento para esse tipo de trabalho. Como assim?
Basta que o agroindustrial baixe o preço do metro ou da tonelada da cana para obrigá-los a produzir mais. Isso quando os capitães do mato, os feitores das usinas, não adulteram os mecanismos de aferição da cana cortada... 
E esse mecanismo tem surtido um efeito tão positivo para os cofres dos agroindustriais que tem retardado em décadas a introdução de modernas máquinas na colheita de cana, senão vejamos.
De acordo com Francisco Alves, especialista da UFSCAR em um trabalho intitulado "Porque morrem os cortadores de cana", na década de 1950 um cortador de cana cortava em média 3 toneladas de cana por dia, passando para 12 t diarias no final da década de 1990, sugerindo um aumento de 300%  em quatro décadas. Será que esse aumento astronomico na produtividade do cortador de cana veio acompanhada de um aumento proporcional ao seu salário? É óbvio que não.
E os agroindustriais encontraram a fórmula que lhes permite ignorar a existencia de modernas máquinas capaz de substituir até 100 homens no corte de cana: baixar o preço pago pelo metro ou tonelada de cana cortada, obrigando o cortador de cana a produzir mais para garantir um salário que possa manter a si e a sua familia.
Certamente nehuma máquina, aumentaria por si só sua produtividade em 300%, sem que o agroindustrial dispendesse nenhum só centavo do seu bolso. E a macabra engenharia da exploração que permite ao agroindustrial aumentar a produtividade das máquinas humanas, responsável pela maior parte dos flagrantes de trabalho escravo no país,  pode inclusive matar dezenas desses neoescravos por exaustão física, tendo em vista o esforço sobre humano do homem que vence a máquina:

"Um trabalhador que corte 6 toneladas de cana, num talhão de 200 metros de comprimento por 8,5 metros de largura, caminha durante o dia uma distancia de aproximadamente 4.400 metros despende aproximadamente 50 golpes com o podão para cortar um feixe de cana, o que equivale a 183.150 golpes no dia. [...]Além de andar e golpear a cana, o trabalhador tem que a cada 30 cm se abaixar e se torcer para abraçar e golpear a cana bem rente ao solo e levantar-se para golpear-la por cima. Além disso, ele ainda amontoa vários feixes de cana cortados em uma linha e os transporta até a linha central. Isto significa que ele não apenas anda 4.400 metros por dia, mas carrega em seus braços, 6 toneladas de cana, com um peso equivalente a 15 Kg , a uma distancia que varia de 1,5 a 3metros." (ALVES,2006, p.93-98)


MITO 5: O etanol é  comprovadamente um combustível 100% limpo.
O FATO: Não existe nenhuma fonte de energia 100% limpa. Como estamos vivendo atemoraizados pela perspectiva apocaliptica inerente ao aquecimento global, é natural que o poder economico engendre mecanismos para tirar proveito da situação.
De acordo com especialistas em agricultura, a cana-de-açúcar é uma das culturas que mais empregam o uso de agrotóxico no Brasil. Não obstante, em muitas usinas não há um adequado manejo dos resíduos da produção industrial. Soma-se aos impactos ambinetais as queimadas, a compactação e a perda da fertilidade natural do solo ocupada pela canavicultura. Talvez resida aí o fato de grande parte das usinas plantarem cana em terras arrendadas, porque a partir do momento em que a produtividade decair pelos impactos ambientais, simplesmente o agroindustrial irá em busca de novas terras.
E paralelamente a essas constatações no processo produtivo, uma recente pesquisa divulgada pelo IEMA - Instituto de Energia e de Meio Ambiente de São Paulo -, aponta que a emissão de gases poluentes (monóxido de carbono, aldeídos, etc)  por um carro flex é maior com álcool/etanol do que com gasolina.
Como se vê, analisando de forma sóbria a questão do etanol, chega-se a conclusão do elevado custo social em se produzir nas proporções preteridas pelos nossos dirigentes, esse mito do combustível limpo, que é o etanol.
Não obstante a Lula ser o garoto-propaganda do etanol brasileiro mundo afora, agora parece que o presidenciável José Serra resolveu entrar nessa cruzada, quando no COP-15 na Dinamarca fez um discurso que nem mesmo o Marcos Jank, da UNICA teria coragem de faze-lo em um forum que deveria debater propostas ambientalmente sustentáveis.
Dessa forma, embriagados pela promessa de que o etanol seja o remédio para nos salvar do tão propalado mal do aquecimento global, corre-se o risco de uma cirrose hepática atingir a mente do nosso atual e provável futuro dirigente, de modo a lembrá-los que  o bom senso adverte, que o abuso do álcool pode trazer danos irreparáveis, e que portanto já chegou a hora de uma injeção de glicose de sabedoria tirar os que se deixaram embriagar, do coma alcoólico.





(**) O autor desse texto ( e desse blog), é geógrafo, mestrando pela Universidade Estadual de Londrina e pesquisador da temática do agronegócio sucroalcooleiro. Esse texto está baseado na Monografia de Bacharelado em Geografia do autor, defendida em 2008.

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